26 janeiro 2006

Resposta a Lya Luft


Por Aristarco Coelho

A escritora Lya Luft, na edição 1935 de Veja, coluna Ponto de Vista, faz indagações que merecem consideração atenta. O título do artigo, (Quanto nós Merecemos?), parece resumir as inquietações da autora em relação ao sistema de recompensa-punição que permeia o pensamento humano e contaminou inúmeras práticas religiosas.

O argumento do texto gira em torno da idéia de que nascemos para ser felizes. Mas, vítimas de uma atitude de auto-sabotagem, somos os algozes de nossa própria felicidade. Segundo Lya, essa atitude autodestrutiva é o resultado de “(...) culpa, dívida, deveres e... mais culpa”, tudo imposto pela cultura, sociedade e família. A articulista também debita a idéia “eu não mereço ser feliz” na conta do ensinamento de que “Deus faz sofrer a quem ama”. Por fim, ela afirma que em resposta a tudo isso, puxamos nossos próprios tapetes e, de forma insana, boicotamos nossa felicidade ao optarmos por um estilo de vida que destrói em vez de construir.

O texto de Lya Luft é rico de conceitos e proposições que fazem parte do pensamento de muitas pessoas. Mergulhados desde a infância em sistemas recompensa-punição, enxergamos a vida sob as lentes do "fazer para merecer". Por isso, a pergunta que sempre emerge diante das dificuldades da vida é: será que eu não mereço ser feliz?

O sistema recompensa-punição é largamente usado em todos dos grupos sociais para confirmar atitudes desejadas e coibir aquelas não aceitáveis. Dadas as regras de procedimento, as pessoas são avaliadas segundo sua capacidade de manter-se fiéis a essa regras. Quem consegue cumpri-las é recompensado; quem não consegue, é punido.

Recentemente, em uma novela televisiva, foi cunhada a frase “Ninguém merece!”. O jargão, repetido por todo o país, sempre se referia a situações em que alguém julgava não merecer aquilo pelo que estava passando. Em tom jocoso, a piada alimentou o mesmo sentimento exposto pela escritora que afirma “Pessoalmente, acho que merecemos muito: nascemos para ser bem mais felizes do que somos...”.

Mas se vamos pensar a vida em termos de merecimento, precisamos saber porque merecemos. Se vamos raciocinar a partir de um sistema de recompensa e punição, então precisamos, antes de tudo, responder algumas perguntas indispensáveis para exigirmos tudo o que merecemos.

Se a vida é um sistema de “Recompensa e Punição”, então...

...Quem o estabeleceu?
...Quais são as regras para viver bem e ser recompensado?
...Quais são as punições previstas no sistema?
...Quem avalia o cumprimento das regras e aplica as punições e recompensas?
...Como e a quem eu posso recorrer se me sentir injustiçado?

Essas não são perguntas fáceis de responder. São indagações com as quais muitas religiões gastam suas energias. Muitos sábios e filósofos viveram suas vidas em buscas dessas respostas. Tentar elucida-las, por isso, não está no escopo deste pequeno artigo. No entanto, lendo o texto da escritora, podemos inferir com razoável grau de segurança sua opinião sobre elas.

Ao perguntar “Quanto nós merecemos?” e responder “(...) merecemos muito: nascemos para ser bem mais felizes do que somos”, Lya Luft entende que a vida é um sistema de recompensa-punição. Onde há merecimento, recompensa e punição sempre estão presentes.

No decorrer do texto, a escritora revela seu entendimento de que somos vítimas de nós mesmos. Assim, podemos concluir que, em sua compreensão, tanto o sistema recompensa-punição quanto suas regras foram estabelecido pelo próprio homem. E embora ela não relacione quais são essas regras, não faça qualquer menção sobre as recompensas e punições que decorrem de sua observância, e não avalie o atual cumprimento dessas regras, considera que a humanidade vem sendo grandemente injustiçada (por si mesma), merecendo muito mais do que tem.

Lya elege o mito da perfeição como o algoz inventado pelo próprio homem em seu sistema recompensa-punição. Assim, a mãe santa, a esposa imaculada, os filhos perfeitos, o patrão infalível, o governo sempre confiável e, nas entrelinhas, o Deus punidor, são espécies de guardiões imaginários que estabelecemos como controladores do nosso próprio sistema recompensa-punição. Ora, esse cenário é realmente confuso. Estamos sofrendo por nossas próprias mãos. Para solucionar esse imbróglio, Lya propõe uma saída simples, rápida e objetiva: deixar de levar em conta esse sensores que nós mesmos instalamos em nosso subconsciente.

Ao que me parece, toda essa confusão nasce da negação por parte do homem de que haja um Ser Supremo, real e pessoal, um autor para a vida e a existência. Aliás esse é o ponto de partida da Bíblia: a existência tem em Deus o seu autor e mantenedor. Além disso, entendo que o paradigma recompensa-punição é uma tentativa de fugir do padrão de Deus para vida humana que é decisão-conseqüência.

Nos primeiros capítulos do livro de Gênesis, que fala sobre os começos, há uma narrativa muito conhecida sobre o relacionamento entre Deus e o primeiro casal humano. Ali Ele se apresenta como o autor e guardião do sistema decisão-conseqüência. Nesse sistema, você é livre para fazer opções, embora não possa escolher as implicações de cada decisão. Assim, ao primeiro casal é dada a oportunidade de escolher entre confiar ou não nas orientações de Deus sobre como viver e ser feliz. No entanto, após tomar a decisão, não haveria como evitar as respectivas implicações.

Deus apresentou vida eterna, felicidade e propósito de existência como implicações da decisão de confiar Nele; explicou também que a decisão de não confiar implicaria em morte, tristeza e vazio existencial. A narrativa bíblica indica que o casal optou por não confiar. Assim, uma vez instalada em nós a dúvida sobre a capacidade de Deus para cumprir Sua promessa de vida, bem como sobre Sua intenção de fazer isso, todos os seres humanos temos perambulado pelos dias de nossas existências perguntando “será que não merecemos ser mais felizes?”.

Se a história terminasse aqui, seria muito mais difícil encontrar felicidade no sistema decisão-conseqüência, apresentado pela Bíblia, do que no sistema recompensa-punição que construímos para nós mesmos.

Entenda isso como se fosse sua conta-corrente no banco: no modelo bíblico, sua decisão de confiar em Deus implica em um crédito sem limites, disponível a toda hora, sem que você tenha feito nada para isso; Deus está sempre disposto em realizar esse crédito e apenas a sua decisão de não confiar Nele o impede de fazer isso. Acontece que ao decidirmos não confiar Nele não há mais nada a ser feito sobre as implicações dessa decisão. A negação do Bem Supremo, a rejeição do Verdadeiro, a desconfiança em relação ao Perfeito trazem de forma justa e em si mesmas a semente de nossa infelicidade.

Já no modelo que criamos, e no qual insistimos em viver, as coisas acontecem de forma diferente. Primeiro, por nossa decisão de não confiar na capacidade e na bondade de Deus, perdemos o crédito sem limite que nos permitiria encontrar felicidade. Depois disso, nos damos conta de que a vida sem esses créditos é muito difícil e penosa. Em seguida, resolvemos fabricar nossas próprias moedas, pensando ser possível suprir nossas vidas deficientes a partir de esforços próprios.


Embora deixe sempre uma sensação de incompletude, esse modelo parece vantajoso para muitas pessoas, uma vez que dá a impressão de que estamos realizando algo. No entanto, em vez de restaurar a confiança em Deus, deixa a todos frustrados ao propor que confiar em nossa capacidade é o que vale a pena.

Por isso Lya Luft está correta ao dizer que nascemos “(...) precisando urgente de conserto”. Para isso, ela nos encoraja em seu texto a abandonar as “entidades inventadas” que estabelecemos como os algozes de nossa felicidade, claramente pensando sob a égide de um sistema recompensa-punição.

Penso que esse conserto, realmente urgente, não acontece dessa forma. Acho isso porque compreendo que, embora muitas de nossas culpas sejam produto de nossas incongruências e dos “fantasmas”, nossos e de outros, que povoam o subconsciente, há uma culpa real que só aparece quando pensamos em termos de decisão-conseqüência e que precisa ser solucionada. Somos culpados por virar as costas à oportunidade de felicidade oferecida pelo Criador da existência. Somos culpados por desperdiçar o Seu oferecimento de crédito sem limite para uma vida com propósito. Somos culpados pela rejeição da companhia do único capaz de dar sentido à vida, por que é o seu Criador.

Ao final do texto, talvez sem prestar muita atenção às propostas que fez e reconhecendo as limitações humanas para consertar-se a si mesmo, Lya Luft pergunta por uma oficina boa, barata, perto de casa e honesta onde esse conserto possa ser feito.

Nas páginas de Velho Livro há um conceito que se parece muito com essa oficina procurada pela autora e não posso me furtar a apresentá-lo. A palavra é conhecida: Graça. Mas seu significado e aplicação, infelizmente, são apropriados por poucos. Por isso vou apresentar os motivos porque considero a Graça de Deus como a única oficina boa, barata, perto de casa e honesta onde eu e você podemos ser consertados.

Antes, no entanto, é preciso apenas que você compreenda que Graça é um favor imerecido, isto é, um presente que você recebe sem que tenha feito qualquer coisa que explique isso. A Bíblia diz que Deus é a fonte plena de Graça. Uma vez que ele mesmo não é devedor de qualquer coisa a quem quer se seja, apenas ele pode ser essa fonte infinita de Graça. Dizer que somos alvo da Graça de Deus é dizer que temos recebido dele presentes especiais sem merecermos absolutamente nada.

Veja que a Graça de Deus não tem lugar em um sistema recompensa-punição. Não há mérito suficiente, não há trocas ou favores capazes de mover a Graça de Deus em direção a alguém. Ela não tem razão, a não ser o amor que transborda do Seu coração.

A Graça de Deus é uma boa oficina para consertar o homem porque por ela somos recebidos como estamos. Não há qualquer exigência ou pré-condição. Ela é o tipo de oficina que recebe desde os que não se acham quebrados, mesmo não funcionando há muito tempo, até aqueles que se acham aos pedaços e por isso são imediatamente socorridos.

A Graça de Deus não lhe custa nada. Não é que ela não tenha valor. É que o valor é tão alto que você jamais conseguiria pagar. Por isso mesmo, seu preço foi pago por outro. A Graça não lhe custa nada, mas custou a vida Daquele que nada precisava pagar.

A Graça de Deus está sempre ao seu alcance. Está perto de casa e também dentro da casa. Ela lhe alcança onde você estiver e quando você quiser. Não há intermediários nem a necessidade de ir muito longe. Basta clamar a Deus, o único capaz de concedê-la.

Na Graça de Deus não há engano. Não há truques ou surpresas. É simples assim: Deus lhe dá a oportunidade de restaurar sua confiança Nele. Isso porque as ofensas das quais você é realmente culpado foram pagas pelo auto-sacrifício do filho de Deus, Jesus Cristo.

Espero que esse artigo de alguma forma chegue às mãos de Lya Luft e ajude a compreender essa maravilhosa oficina, capaz de nos concertar mesmo sem que mereçamos qualquer coisa.

Desejo também que você não fique sem jeito ou desconfiado se entendeu que o conserto da sua vida quebrada existe e está a sua disposição. Confie na bondade e na capacidade do Senhor em lhe fazer feliz, peça a Ele atendimento imediato e comece a viver uma vida de reparos e consertos do Alto.

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