20 abril 2006

Selos Usados

Por Aristarco Coelho

Eu tinha oito anos quando ganhei meus primeiros selos. Uma tia que havia feito uma viagem para o exterior me trouxe uma boa quantidade deles, a maior parte da Hungria (o que só vim a saber muito tempo depois). Comecei a coleção.

Sem muitos recursos, iniciei pela família. Percorri a casa das tias e tios pedindo para que procurassem envelopes antigos e confiscava qualquer correspondência que por acaso estivesse por cima dos móveis da sala. Deles eu recortava os selos tão preciosos.


Depois de esgotados os parentes, recorri aos vizinhos. Eu observava a chegada do carteiro em nossa rua e quando ele entregava a correspondência em alguma casa conhecida, corria a contar a história da coleção e a pedir que os selos me fossem doados.

Quando os selos não couberam mais no envelope em que eram guardados, descobri que havia uma maneira melhor para colecioná-los: um classificador (também esse nome eu só descobri depois, antes era um álbum de selos). Depois de descobrir o preço e constatar que não havia como comprá-lo com minhas economias, não tive dúvida: fiz um relação dos parentes mais próximos e pedi sua participação no meu sonho. Depois de arrecadado o dinheiro, meus pais completaram o valor e eu comprei o "álbum". Na primeira folha, registrei a façanha: "Este álbum foi comprado por uma cota entre família. Em 14/08/79".


Qualquer um que na infância pôde contar com irmãos e primos sabe que muitas das disputas terminam na ameça aos brinquedos preferidos ou objetos de estimação. Pelo cuidado e atenção que eu dispensava a ela, minha coleção de selos rapidamente foi para o topo da lista. Não deu outra: foi enterrada por minha irmã como último recurso de vingança pelos meus desmandos de irmão mais velho. Fui gravemente ferido: ela acertou na mosca. Há pouco tempo, em uma rodada de reminiscências, rimos muito sobre o evento.

Um tio que viajou para a Guatemala também me trouxe selos de lembrança. É bem mais fácil e prático presentear colecionadores. Não precisa ficar correndo atrás de algo diferente. Os selos eram bonitos e muitos deles passaram a fazer parte das coleções temáticas que eu estava inciando, ainda sem saber que era assim que elas se chamavam.

Na adolescência, eles foram esquecidos. Havia muita coisa mais estimulante do que eles. Já eram dois ou três classificadores e muitos selos em uma caixa de sapatos. Mudaram-se de casa pelo menos uma meia dúzia de vezes e finalmente descançaram na parte de cima do guarda-roupa na casa de meus pais. De vez em quando me lembrava deles e voltava a folhear as páginas repletas de selos, mas não passava disso.

Muitos anos depois, casado e com filhos, minha mãe perguntou-me se eu ainda tinha interesse nos selos que estavam em cima do guarda-roupas. Claro que sim! Recebi a coleção de volta. Os classificadores estavam um pouco envelhecidos e pude ver minha evolução como filatelista: selos colados em cadernos, selos em caixa de sapato, selos em álbum de fotografia com páginas adesivas e finalmente selos em classificadores. Foi até onde cheguei. Retomei a coleção.

Os selos nunca foram um negócio pra mim, ainda que comprei, vendi e troquei muitos deles. O que havia era a diversão de colecionar, o prazer de organizar, descobrir fatos e personagens históricos e a satisfação de completar as séries.

Tanto isso é verdade que no recomeço da coleção percebi que muitos do meus selos não posssuiam valor comercial. Grande parte da minha coleção era de selos usados e alguns estavam marcados com dobras, com picotes amassados e haviam sido tirados sem a necessária técnica dos envelopes, portanto não valiam muito. Realmente poderiam não ser importantes para o mercado, mas eram importantes para mim: eu os havia escolhido para fazer parte da minha coleção.

Acho que Deus também também é filatelista. Sua coleção é sem repetidos e tem selos de todos tamanhos, cores e lugares; os formatos também são diversos, alguns são quadrados, outros circulares. Ele não se importar de adicionar selos usados em sua coleção. Pelo contrário, alegra-se em acolhê-los mesmo amassados, dobrados e amarelados. Depois de recebê-los em sua coleção, Ele tem prazer em restaurá-los. Ainda que estejam rasgados... aos pedaços, ele tem o desejo e a habilidade para consertá-los.

Relacionamentos quebrados, vidas sem objetivo, emoções confusas, egoísmo, tristeza profunda, medo, culpa, avareza, desamor, violência, angústia, não importa o problema. Ele conserta! E não tem pressa! Ele toma cada um em suas mãos e restaura com cuidado sua própria imagem impressa neles, muitas vezes difícil de ser reconhecida.

Algumas vezes gostaria de poder restaurar os selos da minha coleção, mas me alegro em saber que aquilo que eu não posso fazer com eles, o Senhor faz comigo.


Um comentário:

Elefante de Cobalto (Tito) disse...

Muito bom :) gostei da evolução da história :)