18 junho 2012

O Paulo da Pedagogia


Síntese do texto " teológico e pedagógico em Paulo Freire: desafios à reflexão curricula" escrito por Manfredo Carlos Wachs. Produzido dentro dos limites de forma exigidos pela EST - Escola Superior de Teologia como requisito da disciplina Relação Teologia e Pedagogia.

A guisa de introdução, para posicionar seu ponto de partida e os objetivos do texto, o autor afirma que, embora teologia e pedagogia tenham experimentado referências comuns nos anos 1970, a instrumentalização dos princípios pedagógicos de Paulo Freire como mera ferramenta no contexto prático da educação cristã não tem contribuído para um diálogo interdisciplinar, mas esvaziado aqueles princípios de seus significados. 

Entende o autor que à luz da intercessão histórica, faz-se necessário encontrar uma intercessão também na teorização, sistematização e reflexão acadêmicas que leve teologia e pedagogia a cooperarem na feitura de um novo pensar. Isso seria alcançado pela escuta mútua entre teólogos e pedagogos, uma espécie de semeadura de um novo processo de construção do conhecimento.

Pressupõe o autor que a reflexão pedagógica deve ter qualidade teológica da mesma forma que a reflexão teológica deve primar pela boa pedagogia. Assim, indaga o autor sobre “o quanto de teológico está incorporado na pedagogia de Paulo Freire”, e o faz em dois momentos: primeiro refletindo sobre o ponto vista dos teólogos a respeito da obra de Freire e em seguida sobre a qualidade da teologia ali presente.

I – Análise Crítica

Quanto à análise crítica, o texto apresenta-se de forma resumida e, quiçá, rasa. De um lado são apresentadas as críticas de Matthias Preiswerk, Dom Vicente Scherer e John Elias; do outro lado são listados pontos de defesa trabalhados por Nestor Beck, Carlos Alberto Torres Novoa e Herman Brandt.

Preiswerk vê Freire como uma síntese que mescla humanismo católico, nacionalismo e traços do marxismo. Já Sherer é categórico em afirmar que o pensamento de Freire e a doutrina cristã são irreconciliáveis e Elias vê excesso de otimismo nas ideias de Paulo Freire, pois não acredita que o homem pecador seja capaz de transformar sua realidade.

Na outra margem, Beck encontra na pedagogia de Freire elementos práticos da liberdade cristã e uma correlação entre ambas quanto ao ambiente comunitário em que nascem e sobrevivem. Novoa evoca a importância da mescla entre a educação e a teologia que visam à liberdade. Brandt advoga que Freire concede à libertação uma qualidade religiosa e afirma que ele articulou sua pedagogia a partir do a priori da fé no ser humano. Novoa complementa o entendimento ao afirmar que em Freire não é caso de haver apenas linguagem ou metáforas religiosas, mas de teologização.

II – Qualidade Teológica

No texto, o autor escolheu dois aspectos do pensamento pedagógico de Freire para refletir sobre a qualidade da teologia ali presente: a questão do a priori e o poder da palavra.

Entende o autor que ao apresentar a fé no ser humano como pressuposto para o diálogo entre pessoas e grupos, Freire reconhece que a convicção na capacidade do ser humano de “fazer e refazer, criar e recriar” não trata de afirmar a existência de habilidades, atributos ou conhecimentos, mas tem ares de “graça concedida” e, portanto, se encontra dentro da dimensão da graça divina, do tipo que fala Jesus no Sermão do monte ao afirmar que Deus “faz nascer o sol tanto sobre bons como maus”.

Freire compreende Deus como aquele que sabe de forma absoluta e o ser humano como quem se encontra em permanente processo de aprendizagem. Assim, da mesma maneira que Deus está presente na história da libertação humana, o ser humano se faz presente à medida que liberta e é libertado em seu processo de aprendizado. O ser humano, então, é co-autor da Criação e co-participante da obra de Deus ao “criar e recriar formas de relacionamento com toda a criação”.

Nessa perspectiva, a fé no ser humano fala do amor às pessoas e o amor está se sustenta na esperança da transformação. Estabelecida esta “tríade antropológica” do pensamento pedagógico de Paulo Freire, não se pode fugir da tríade bíblica apresentada pelo outro Paulo; o teólogo hierarquiza e o pedagogo entrelaça, mas os entendimentos se tocam e são compartilhados.

O amor que está presente no diálogo se vê na humildade de ouvir a leitura que o outro tem do mundo, inclui a confiança mútua na ação libertadora do aprendizado e a esperança de transformação da realidade pela vivência dos sinais do Reino como justiça e igualdade. Ao mergulhar na realidade experimentada pelas pessoas e emergir com elas para uma nova realidade depois de sofrer junto o sofrimento que agora é conjunto, fica clara a perspectiva cristológica que permeia o cerne da pedagogia freireana.

Outro aspecto abordado no texto é o poder da palavra, que no pensamento de Freire “forte conexão teológica”. Usada ao mesmo tempo para sintetizar o binômio ação-reflexão e expressar a leitura de mundo e dos processos de transformação, a palavra em Freire é um ato criador do “Ser-Mais”. Assim, se estabelece uma ligação com a concepção bíblica da palavra geradora de vida como apresentada no Gênesis.

Para Freire o evangelho é um palavra libertadora construída por Cristo em meio ao relacionamento dele com o mundo e as pessoas em sua volta e Jesus é o pedagogo que vai fazendo surgir essa “palavração” a partir da realidade da pessoas com quem convive pelas parábolas, pelos milagres e por sua paixão e morte.

A antropologia freireana compreende o ser humano como inacabado, incompleto e, portanto, sujeito à experiência do aprendizado. Cientes desta condição os atores do processo ensino-aprendizagem podem revestir-se de humildade e respeito por si e pelos outros, bem como abertos à valorização da leitura que o outro tem da realidade. Por outro lado, pode-se destacar o entendimento de Paulo Freire sobre o processo de ensino-aprendizagem como “uma relação de comunhão entre pessoas pensantes”. Isso remete ao ambiente comunitário seu entendimento pedagógico e o relaciona à salvação que é nossa, e não minha.

17 junho 2012

Unidade da Igreja


Síntese dos textos "A unidade da Igreja na visão de Igreja da Reforma" e "A Igreja Católico-Romana e o Ecumenismo", ambos escritos por Gottfried Brakemeier, como requisito da disciplina Fundamentos do Ecumenismo e dentro dos limites formais exigidos pela Escola Superior de Teologia - EST

À luz dos textos escritos por Brakemeier, podem ser percebidas compreensões distintas a respeito do ecumenismo entre as igrejas protestantes e a ICAR. Talvez a melhor maneira de apresentar esta diferença seja resgatar a "origem una" da Igreja de Cristo e admitir que apenas no século XVI o desejo de reforma, ante as resistências internas, chegou ao ponto de ruptura. Portanto, por mais de 1500 anos a igreja cristã ocidental, com suas mazelas e imperfeições, foi uma só e construiu sua identidade sobre as ideias de universalidade, raízes apostólicas e hierarquia jurisdicional (católica, apostólica e romana).

O doloroso rompimento deu início a uma era confessional em que grupos de cristão que se colocaram fora do guarda-chuva da hierarquia jurisdicional afirmaram-se Igreja de Jesus. Como resultado da divisão produzida pela reforma, o mundo ocidental foi exposto à desconfortável pergunta sobre qual igreja possui “legitimidade e autenticidade apostólica”.

Nesse contexto, quando é apresentada à ideia de ecumenismo, a ICAR aponta como único caminho para a unidade o retorno dos excomungados ao seio da única Igreja de Cristo, submetendo-se à autoridade do primado de Roma. É, portanto, um ecumenismo de absorção que compreende o receber de volta aqueles que abjuraram a fé dos apóstolos como um gesto de generosidade. Pode-se discordar do entendimento ecumênico da ICAR, mas não é possível negar-lhe a coerência com a imagem que a Igreja de Roma faz de si mesma.

Voltando os olhos para as igrejas protestantes, o autor do texto apresenta, inicialmente, um ecumenismo de negação. Essa prática parece impregnada no modo de pensar protestante. Assim, não é necessário que as tradições sejam semelhantes; estruturas não podem assegurar unidade, o título de quem conduz a igreja não é questão de última relevância; a estrutura eclesiástica não é constitutiva da igreja; a unidade não se baseia numa “lei” ou numa ordem; e por fim o ecumenismo não pode satisfazer-se apenas com a unificação de instituições.

O resgate da posição ecumênica luterana se faz no entendimento de que a Confissão de Augsburgo reconhece a existência da Igreja onde quer que o evangelho seja pregado de maneira pura e os sacramentos sejam administrados corretamente. Afirma, portanto, a posição luterana como uma clara “abertura ecumênica”. No entanto, a afirmação de Augsburgo também poderia se vista como um ecumenismo de dissidência em que aqueles que romperam, ao sair, tentam resguardar sua própria autenticidade em face das divergências e põem em xeque as práticas sacramentais e o conteúdo da pregação daqueles que ficam. Os mesmos raciocínios poderiam ser aplicados à posição calvinista.

A despeito da inicial identidade por negação, o autor não se furta a apresentar uma agenda positiva em termos de confluência de propósitos (em contraponto à mera concordância em torno de termos semelhantes com interpretações diferentes); destaca a postura de humildade e autocrítica como base para a disposição ao aprendizado ecumênico; e apresenta uma cultura de unidade na diversidade e pluralidade dos carismas dentro das comunidades cristãs como base para o diálogo inter-eclesiástico. Essa agenda positiva recebeu “coroa de glória” no entendimento do autor de que o critério capaz de testar todo o resto é a unidade da igreja em torno da centralidade em Jesus.

Quanto à posição da ICAR no movimento ecumênico e sua postura atual, o autor do texto considera que vale a pena verificar a trajetória de suas posições no decorrer da história e o faz com brevidade e precisão.

Ciente de sua ininterrupta sucessão histórica, os cerca de 1500 anos em que a Igreja Romana manteve sua catolicidade estabeleceram uma visão em que o organismo vivo foi confundido com as estruturas institucionais. Portanto, após a ruptura estabelecida pela reforma, a posição da ICAR foi de que a unidade seria restabelecida apenas mediante o retorno dos excomungados. Em meados do século XIX e início do século XX essa posição se confirma no concílio Vaticano I e na encíclica “Mortalium animos”, com o fortalecimento da autoridade do bispo de Roma e a proibição de envolvimento nos processos ecumênicos.

Indícios de abertura são vistos no livro publicado (1937) por Yves Congar, que entre outras coisas referiu-se aos protestantes como “irmãos separados”, e no grupo de trabalhos ecumênicos criado por Lorenz Jaeger (ICAR) e Wilhelm Stählin (luterano) em 1946. Essa abertura evoluiu e encontrou sua expressão máxima no Concílio Vaticano II (1962), que teve como promotor e Papa João XXIII. A partir deste concílio a ICAR passou para uma nova fase quanto às reflexões e práticas a respeito do ecumenismo. A nova posição católica produziu diálogos internacionais com as Igrejas Ortodoxas, Anglicanas, Luteranas, reformadas e livres (nesta ordem) com elaboração de documentos comuns e forte entusiasmo quanto ao destino do ecumenismo.

No entanto, não demorou até que a disputa entre conservadores e progressistas dentro da ICAR produzisse freios e retrocessos. A ambiguidade de vários textos do Vaticano II se tornou o mote para uma interpretação conservadora do claro espírito ecumênico do concílio e o fechamento de portas que já estavam escancaradas.

Entre idas e vinda, hoje a ICAR parece divida quando o assunto é ecumenismo. Se por um lado sua liderança caminha na contramão do ecumenismo, haja vista a volta das indulgência em 2000, a preferência pela nomeação de clérigos conservadores, a resistência na assinatura de documentos conjuntos, e o retrocesso na abordagem de recentes encíclicas papais sobre assuntos em que a convergência já havia sido alcançada, por outro lado, muitos segmentos leigos continuam firmes em seu propósito de experimentar a “fraternidade eclesial na diversidade reconciliada”. Vale lembra que a igreja não é maior que seus líderes humanos, pois que é obra do Espírito de Deus que a conduzirá o destino que para ela tem preparado.

Ecumenismo


Síntese das principais ideias dos textos "Ecumenismo: Definição, significado, abrangência" e "Unidade e pluralidade da Igreja conforme o Novo Testamento", ambos escritos por Gottfried Brakemeier, como requisito da disciplina Fundamentos do Ecumenismo e dentro dos limites formais exigidos pela Escola Superior de Teologia - EST.

A partir do texto “Ecumenismo: definição, significado, abrangência” apresente estas três facetas do ecumenismo: dimensão da teologia, disciplina e movimento.

No decorrer da história, o termo grego de onde provém ecumenismo (ecumene - mesma origem etimológica de outros que se referem ao mundo que habitamos tais como ecologia, economia e ecossistema) produziu abordagens diversas com enfoque geográfico, político, cultural e por fim eclesiológico – quando se consolidou como forma de pensar que tem o propósito de zelar pela unidade do corpo de Cristo.

O ecumenismo, percebido como esforço por recuperação da unidade visível da Igreja, surge da constatação da perda da universalidade de que a Igreja gozava nos primeiros séculos, quando era efetivamente una, ainda que diversa. Portanto, o ecumenismo milita a favor da união do povo que se chama cristão para o cumprimento de uma missão que lhe é comum.

Na fala do Conselho Mundial de Igrejas, no entanto, o ecumenismo não precisa restringir-se à promoção da unidade da igreja, mas deve abranger a unidade de toda a humanidade. Assim, a unidade da igreja teria como objetivo último mais que o congraçamento da igreja; objetivaria congregar toda a criação de Deus. Não faltam opositores a este pensamento entre protestantes e católicos que defendem uma agenda restrita à recuperação da unidade cristã.

Não há como negar que a história milenar da Igreja revela divisões, facções, fracionamentos e separações que desde o começo existem, mesmo contra o desejo de Jesus de “uma igreja”. É neste ambiente de rompimentos que o ecumenismo se propõe a trabalhar em prol da unidade. Para isso, é fundamental reconhecer que a unidade da igreja é anterior às divisões que hoje se apresentam. Por outro lado, é necessário compreender que unidade não é sinônimo de uniformidade. A igreja sempre se apresentou diversa e multiforme (como a graça de Deus). Ecumenismo, portanto, trata de “reconciliar, conjugar, criar comunhão...”, não de homogeneizar.

Mesmo uma causa justa e digna, o ecumenismo enfrenta resistência de diversos flancos e desperta muitos temores: não seria uma ameaça à identidade de fé enfraquecendo as percepções particulares? Não resultaria em sincretismo religioso com a mistura de credos conflitantes? A verdade não seria relativizada a partir das concessões? A resposta é “não” para todas as perguntas, uma vez que o ecumenismo pretende tão somente mediar o diálogo apontando para o evangelho de Cristo como recurso comum; “não renuncia à verdade, não nivela as diferenças nem as ignora”.

Faz-se necessário também reconhecer que o conflito presumido entre ação ecumênica e missionária só se justifica a partir de uma perspectiva de concorrência entre igrejas e de ações meramente proselitistas. Ecumenismo, por outro lado, se preocupa em vencer a rivalidade em prol da missão comum.

Além de se apresentar como o movimento descrito até agora, o ecumenismo também pode ser visto como uma dimensão da teologia a partir da perspectiva de interação entre as diversas tradições e épocas do pensamento teológico de maneira a enriquecer todo o fazer teológico. Além disso, é razoável vê-la também com uma disciplina que se pretende objeto de estudo, divulgação e reflexão.

O segundo texto fala de uma “pluralidade concêntrica” como forma de entender e relacionar unidade e pluralidade na tradição cristã. Apresente os argumentos do texto a favor desta compreensão.

O Novo Testamento é extenso na apresentação da unidade como base da existência da Igreja de Jesus Cristo: um só rebanho, um único pastor, apenas um Corpo, um só Espírito, um único Senhor, uma só fé, um batismo, um só Deus e pai de todos. Por outro lado, a história revela que temos resistido às tentativas de uniformizar a diversidade que marcou a igreja desde o começo.

Os “fatores diversificantes” passam pelo fato de que a fé cristã começou com um grupo de pessoas (o que caracteriza pluralidade), pela realidade de a igreja ter sido gerada em ambientes culturais diversos (fonte de tensões em torno da vida de comunhão) e pela individualidade dos testemunhos produzidos por pessoal de diferentes classes sociais, gênero, etnia e historia pessoal. Portanto, não há como sustentar uma igreja primitiva homogênea.

Unidade e pluralidade fazem parte da natureza da igreja e se conciliam apenas porque o Novo Testamente apresenta a pessoa de Jesus como o “eixo gravitacional” em torno do qual a igreja, com sua pluralidade, gira. Assim, pode-se falar de uma pluralidade com um único centro, uma “pluralidade concêntrica”, entendimento que priva o ecumenismo de atuar contra as variadas expressões da fé cristã.

É senso comum que há virtude e riqueza na diversidade, mas tão somente quando na pluralidade se estabelecem acordos de cooperação mútua. A diversidade que agride e trabalha para exterminar as diferenças não é legítima e abala a unidade da igreja. No entanto, quando o centro comum é Cristo podemos recuperar o entendimento dos primeiros cristãos de que Ele aproximou “judeus e gregos” e os fez família de Deus; tarefa almejada pela perspectiva ecumênica.

Ressalte-se, no entanto, que pluralidade concêntrica não significa tolerância a heresias (descaracterização e perversão da fé). O Novo Testamento apresenta-se seguro de que existem pilares de verdade que não podem ser movidos sob a pena de levar a baixo todo o edifício da fé. O ecumenismo, portanto, carece de compromisso com essas verdades e não pode ser encontrado cooperando com a “confusão religiosa”. Por outro lado, é preciso amor para que o apego à verdade não se torne tirânico. Se a defesa da fé é excludente, o amor é inclusivo. E cabe ao ecumenismo a tarefa de amalgamar os dois, como fez Jesus, de maneira que a unidade da igreja seja percebida pelos de dentro e pelos de fora. Exemplos desse exercício não faltam no novo testamento, o que nos mostra que a tarefa não é impossível.

15 junho 2012

Sola fide - um princípio anti-judaico?


Síntese comentada com base no texto "Sola fide - um princípio anti-judaico?", escrito por Gottfried Brakemeier, professor na Escola Superior de Teologia, e publicado em Estudos Teológicos 2009 Vol 49 N° 1. 

Comente: "Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê." (Rm 10.4).

Analisada a palavra “fim” sob a compreensão de finalização ou de finalidade, o apóstolo, em sua afirmativa, contrapõe seu novo entendimento sobre salvação, adquirido a partir de Cristo, ao entendimento aprendido de seus mestres no judaísmo. Ao colocar Cristo como o ponto final no entendimento da lei como caminho de salvação, o apóstolo corrobora e dá corpo ao pensamento do próprio Jesus que se afirmou ele mesmo o caminho para Deus.

Não que a lei tenha sido abolida, mas claramente foi redefinida em sua normatividade: deixa de ser tratada como um fim em si mesmo e se legitima apenas se apoiadora da prática do amor; perde a centralidade na vida do fiel, que reconhece no amor a “regra” maior; perde também sua autonomia podendo ser revista se o critério do amor não for nela encontrado.

Paulo reflete o pensamento que Cristo expressou sobre diversos aspectos da lei (como o sábado) afirmando indiretamente que o homem não foi criado para lei e sim vice-e-versa. Desta forma, se a vontade de Deus não está circunscrita à Torá, é razoável concluir que outras nações também tenham sua dose de percepção a respeito dessa vontade – tese que o apóstolo advoga com clareza.

Por outro lado, o apóstolo parece apontar para uma redefinição também da função da lei. Em contraponto à ideia de que a lei seria um instrumento para manter o povo ao alcance da promessa abraâmica (nomismo da aliança, segundo Sanders), Paulo apresenta a lei como uma poderosa lupa a ampliar e revelar nossa incapacidade de atender ao ideal divino para um relacionamento com Ele e com o próximo. Assim, a lei deixa de ser instrumento de salvação para cumpri a função de desvelar nossa profunda necessidade de salvação – concedida, na verdade, por graça (como a promessa feita a Abraão); não pelo cumprimento da lei, mas mediante a fé.

As investidas de Paulo, aparentemente contra a lei, na verdade são contra a confiança na lei. Ao expor o zelo sem entendimento de seus compatriotas (e a arrogância dos gentios), ele não poupa o crasso engano de quem se apresenta cheio de confiança na capacidade de agradar a Deus por si mesmo e certo de que a lei (no caso dos judeus) será seu apoio nessa empreitada.

Desta forma, é aquele que crer confiadamente no amor gracioso de Deus encarnado em Cristo que é por Ele justificado; Ele é o final das fracassadas tentativas de justiça própria pelo cumprimento da lei e ao mesmo tempo o destino final para onde a lei nos conduz a fim de sermos agraciados pelo amor do Pai.

Comente: "O qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica." (2 Co 3.6).

A perspectiva da existência de duas alianças faz parte apenas do ponto de vista cristão, que está apoiado no reconhecimento de que a igreja foi construída sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas; afinal, Cristo é o cumprimento da promessa feita a Abraão e anunciada pelos profetas.

Ainda que o cristianismo não reconheça na lei (nomos) a qualidade de meio de salvação, admite a importância da aliança anterior ao fazer clara distinção entre a lei e a Torá, que a contém. Neste ponto, fica claro que a rejeição da lei e suas obras como “tábua de salvação” não pode ser confundida com anti-judaísmo; a aliança anterior é mantida não apenas como ícone, mas é utilizada como fundamento teológico para explicar a nova aliança.

Por outro lado, a partir da compreensão da proposta de Jesus para nosso relacionamento com Deus e com as pessoas, onde a lei e suas obras dão lugar à fé e à gratidão, a comunidade cristã reconhece a Jesus como mediador de uma nova e mais ampla aliança que tem como marca o perdão concedido a uma humanidade irremediavelmente pecadora.

Está claro que essa nova aliança não surge do nada propondo algo totalmente inovador. No entanto, o elemento trazido por Jesus da periferia para o centro da questão, a fé, faz tanta diferença que não é exagero chama-la de nova. “A tua fé te salvou” afirmou Jesus. Paulo resgatou os sinais dessa nova aliança já registrados na primeira: o justo viverá por fé, Abraão creu e isso lhe foi imputado por justiça. Assim, em quanto na primeira aliança justos são aqueles que guardam a lei a partir de seu esforço e dedicação, na nova aliança são aqueles que confiam no amor gracioso de Deus que são justificados.

Um dos principais pontos de tensão no relacionamento entre as duas alianças é exatamente o absurdo da justificação por graça mediante a fé. Isso porque ele expõe todos os esforços de justiça própria realizados pelo ser humano. “Não há um justo... não há quem faça o bem... nem um só.”, compilou o apóstolo Paulo em argumento que constrange o ser humano (judeu ou grego) a despir-se de suas pretensões e aponta para a justiça que vem de Deus.

Desta forma, o apóstolo apresenta uma nova aliança em que as pessoas encontram vida, valor e significado na fé que nasce da ação do Espírito, em substituição ao mérito que se adquire do cumprimento das exigências da lei. No cerne do evangelho pregado por Paulo não podem subsistir dois caminhos, um para os judeus mediante a lei e outro para os cristãos mediante a fé. O povo de Deus é um só formado de todos aqueles que abandonaram a justiça própria e se apropriaram da justiça de Deus demonstrada em Cristo Jesus.

Não há, no entanto, na apresentação de Paulo, um desejo de distanciamento entre as alianças. Somos herdeiros da fé de Abraão, recebida por graça. São esses os elementos capazes de nos proteger do veneno letal presente no esforço próprio e na auto-justificação.

11 junho 2012

Jesus, o exorcista?


Síntese comentada das ideias principais do artigo "Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos", escrito por Uwe Wegner in Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003.


Como Jesus, segundo os evangelhos, concebia os exorcismos e os diferenciava das terapias e das transgressões morais?

A partir dos relatos dos evangelhos pode-se concluir que Jesus cria na existência do Diabo como um ser que se opõe (mediante tentação, sedução e indução) ao domínio do Reino de Deus desde tempos imemoriais e em demônios como seres sem corpo físico, capazes (mas não exclusivamente responsáveis) de infligir doenças de ordens física e psíquica mediante possessão.

Há elementos nos exorcismos relacionados nos evangelhos suficientes para compreender que, embora não considerasse a hipótese de que o Diabo fosse possuir uma pessoa, Jesus ligava o resultado das ações demoníacas aos propósitos do “príncipe deste mundo” – roubar, matar e destruir.

A brevidade dos relatos sobre os exorcismos e a pouca elaboração de Jesus sobre possessões e libertações não permitem uma resposta conclusiva sobre como Ele diferenciava exorcismo, terapia e transgressão moral. No entanto, está claro nos evangelhos que sua atitude não foi a mesma diante de todas as situações que confrontam o Reino de Deus e seus valores.

A hipótese de que o exorcismo fosse meramente uma interpretação equivocada de Jesus, provocada pelo entendimento limitado da época quanto a algumas doenças físicas e psíquicas, encontra resistência em outros elementos comuns à maioria dos casos relatados nos evangelhos, quais sejam: (a) a perda da identidade pelo possesso uma vez subjugado pelo demônio, (b) a situação de oposição aberta entre o demônio e o exorcista e (c) a violência destrutiva que cerca a situação.

De toda forma, Jesus parece compreender exorcismos, curas e o enfrentamento das transgressões morais como provas da presença e do avanço do Reino de Deus, mediante um claro entendimento de que essas ações restauram a integridade do ser humano de forma holística.

Como você avalia as diferentes hipóteses apresentadas sobre a compreensão dos demônios em Jesus? 

Percebo que as três hipóteses tentam estabelecer uma relação entre a prática e o pensamento de Jesus sobre o assunto e o contexto cultural, religioso e filosófico em que ele viveu e por isso consideram Jesus tão somente a partir de sua humanidade.

Primeira: a hipótese pressupõe que a crença em demônios como “espíritos maléficos e contrários a Deus” seja resultado da limitada compreensão da época em relação às doenças do corpo e da mente humana. Apresenta Jesus inserido em um estágio primitivo de cultura e por isso limitado quanto ao seu diagnóstico das “possessões”, ainda que coerente em relação à sua prática exorcista.

A existência de correntes filosóficas e religiosas que se mostravam céticas tanto em relação à existência de certas dimensões espirituais bem como sobre a relação das doenças com esse “mundo espiritual”, deixa claro que Jesus não estava aprisionado sob uma obrigação cultural de crer em demônios, nem de associá-los às doenças existentes.

Parece, então, que o pressuposto (e a hipótese) não se sustenta, o que é reforçado pelo autor do artigo ao apresentar a convivência pacífica dos avanços tecnológicos atuais com a crença em uma dimensão espiritual distinta da que vivemos.

Segunda: apresenta Jesus acima e além de sua cultura. Portanto ele não acreditaria em demônios, mas utilizava-se da linguagem corriqueira de seus contemporâneos para oferecer algum tipo de libertação.

Entendo que, ao fazer-se gente, o Filho se autolimitou. Jesus passou por aprendizagem e aquisição de cultura como todos os seres humanos passam. Não é razoável, então, supor que ele estava fora e acima de sua cultura. Vê-lo limitado por certas circunstâncias de sua existência humana não o diminui, mas, ao contrário, ratifica a beleza da encarnação do verbo.

Além disso, a hipótese parece contraditória em si mesma, pois não haveria libertação a ser oferecida se ele não cria na existência e ação de demônios. O que se poderia afirmar, então, dos relatos de exorcismo é que Jesus estaria retendo o seu conhecimento da verdade e mantendo seus contemporâneos aprisionados por crendices; uma postura incoerente com sua biografia.

Terceira: Jesus é apresentado como tendo passado por uma evolução em seu pensamento. Ele teria partido da crença em demônios e chegado ao entendimento de que a raiz dos males está na verdade no coração humano.

Não descarto a possibilidade de que, no decorrer de sua vida como ser humano, Jesus tenha ampliado seu entendimento a respeito da natureza humana e da realidade que nos cercar. Entendo que até o contexto de sua própria missão possa ter sido clareada pelo Espírito no decorrer de sua vida (ainda que os relatos dos evangelhos não apresentem tais evoluções).

Quanto ao assunto em tela, não vejo indícios de mudança de posição, nem tampouco encontro vozes entre seus discípulos, vozes posteriores, oferecendo o “último entendimento de Jesus” sobre este assunto.

Como você avalia a prática exorcista em igrejas de cunho neopentecostal à luz do posicionamento de Jesus?

Se por um lado, considero bom que essa dimensão dos sinais do Reino não esteja esquecida, por outro lado acho que o exorcismo tornou-se peça publicitária para projetar pessoas e instituições sem compromisso com o Reino. Ao contrário do que relatam os evangelhos, os exorcismos nessas igrejas me parecem repetitivos, repletos de mantras mágicos e desrespeitosos para com o ser humano.

Recentemente assisti a um vídeo em que Edir Macedo da IURD “entrevista” um demônio que afirmava atuar na igreja concorrente, a Mundial. O espetáculo durou vários minutos, enquanto o bispo “obrigava” o demônio a revelar as táticas que usava na concorrente falando através de uma mulher com as mãos postas para trás, como se estivesse amarrada. Em nada isso se parece com a palavra simples de Jesus: saia!

Para Jesus, o exorcismo era devolução da vida plena planejada por Deus; em muitas igrejas neopentecostais, infelizmente, ele transformou-se em prisão da alma através do medo e da dominação.