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29 janeiro 2011

O salmista do século 20


A psicóloga clínica Izar Aparecida de Moraes Xausa, coordenadora da comissão científico-tecnológica do Serviço Interconfessional de Aconselhamento (SICA), em Porto Alegre, pode estar exagerando ao chamar o psiquiatra Viktor Emil Frankl de “o salmista do século 20”. Porém, ela tem diversas razões, já que há uma coincidência entre a sede de Deus expressa nos Salmos e a redescoberta dessa mesma dependência na experiência, nas abordagens psicológicas e nos livros de Frankl.

Sem constrangimento algum, o salmista confessa sua sede interior de Deus. No Salmo 42 (Como a corça anseia por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo), no Salmo 63 (Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água), no salmo 84 (A minha alma anela, e até desfalece, pelos átrios do Senhor; o meu coração e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo) e no Salmo 143 (Estendo as minhas mãos para ti; como a terra árida, tenho sede de ti).

Viktor Frankl, por sua vez, garante que sobreviveu aos campos de concentração por causa de sua fé pessoal em Deus, que lhe dava e mostrava o sentido da vida. Izar lembra que, “num dos primeiros discursos públicos depois da guerra, Frankl testemunhou o poder sustentador da fé num Deus pessoal e vivo”. Ele poderia parafrasear Davi na situação difícil em que este se encontrava: “Todo o meu ser anseia por ti nesse campo de concentração, sem nome, sem família, sem consultório, sem cartas, sem livros, sem nada”.



Outro comportamento coincidente entre o salmista do século 10 antes de Cristo e o salmista do século 20 depois de Cristo é que ambos olhavam para as alturas. O salmista da Bíblia proclama: “Levanto os meus olhos para os montes e pergunto: De onde me vem o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra” (Sl 121.1-2, NVI). Gordon W. Allport, ex-professor de psicologia de Harvard, ousa dizer que, por terem transformado tudo, em especial a psicologia profunda, em “psicologia das alturas”, os estudos de Viktor Frankl deram origem ao “movimento psicológico mais importante de nosso tempo”. Tanto os médicos como os pacientes têm de olhar para os montes, para cima, para as alturas, para Deus, onde encontrarão a chave de tudo: o sentido da vida. Só assim será possível vencer o vazio existencial, que Frankl diz ter sido a neurose do século 20.

Um dos livros escritos por ele chama-se “Der Unbewusste Gott”, que na verdade é sua tese de doutorado em filosofia (1948). Em vez de traduzir como “O Deus Inconsciente”, os tradutores brasileiros Walter O. Schlupp e Helga Reinhold deram ao livro o sugestivo título de “A Presença Ignorada de Deus”. O maior trunfo de Frankl é não se envergonhar de crer na existência de Deus como pessoa e mostrar que essa existência está arraigada no interior de qualquer um, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Nesse sentido, mesmo não sendo cristão (era judeu), Frankl foi um pregador de Deus como os profetas do Antigo Testamento. Como psicólogo e psiquiatra, ele mostrava que “além do elemento instintivo, havia o elemento espiritual inconsciente”.

Na logoterapia, fundada por Frankl e geralmente chamada de “a terceira escola vienense de psicoterapia”, “o homem é levado não tanto para fora de uma doença, como em direção a uma verdade” (Izar Aparecida). Na psicanálise, explica ele, “o paciente se deita num divã e conta ao médico coisas que, às vezes, não são muito agradáveis de contar; na logoterapia, no entanto, o paciente pode ficar sentado normalmente, mas precisa ouvir coisas que, às vezes, são muito desagradáveis de se ouvir”. Para Frankl, “o ser humano não é impelido pelo impulso, mas puxado pelos valores”.

Tudo isso se reveste de um valor muito maior se nos lembrarmos que, nas décadas de 1930 e 1940, o ambiente na Alemanha nazista não era nem um pouco favorável ao cristianismo. Hitler dizia que todas as religiões eram semelhantes e que nenhuma delas teria futuro. O alvo oculto do Führer era fazer o que Jesus fez com a figueira infrutífera: “despedaçar as raízes e os ramos do cristianismo”. Não seria necessário abrir guerra contra os cristãos, fossem católicos ou protestantes. Bastava impedir que as igrejas fizessem qualquer coisa diferente do que estavam fazendo, ou seja, perdendo terreno dia-a-dia. Naquele período, um dos mais sombrios da história, Hitler soube substituir a Páscoa e o Natal por festividades nacionais sem teor religioso, e a cruz pela suástica, o emblema nazista. Já que o credo do Cristo judeu ensinava uma “ética efeminada de piedade”, os pais foram desencorajados a mandar seus filhos a qualquer escola religiosa. Para substituir o cristianismo, foi instituído “o culto do Führer, do sangue e do solo”. Em 1937, mais de 100 mil alemães abandonaram formalmente a igreja católica. Uma pequena porcentagem de católicos e protestantes era praticante.

Apesar de ter sido irresponsavelmente chamado de ateu tanto por Freud quanto por um padre durante um ofício religioso na famosa Igreja Votiva de Viena, Frankl era um judeu religioso. Na infância, ele e o irmão mais velho eram obrigados a ler poemas em hebraico ao pôr-do-sol de toda sexta-feira, quando começava o sábado judaico. O exemplo e as palmadas do pai fizeram de Viktor Emil Frankl um daqueles judeus ou não-judeus “tementes a Deus” de que fala o livro de Atos (10.2; 16.14; 18.7). Porém, aquele que é chamado “o salmista do século 20”, “o Copérnico da psicologia”, “o médico do vazio existencial” e “o psicólogo da religião humana” nunca se tornou seguidor ou discípulo de Jesus.