17 julho 2012

A falácia da inclusão


Quando a busca por poder e controle estabelece a naturalidade de uma situação de exclusão, para em seguida promover a inclusão (dentro dos limites do paradigma dominante), aquele que é chamado de vítima, ao se enxergar dessa forma, reforça o paradigma que negou sua natural inclusão. Assim, perpetua a relação dominador/dominado.

Nesse espiral paradoxal quanto mais se atua na direção de incluir alguém em um sistema de dominação mais se fortalece seu modo excludente de ser. A falácia é de que a dignidade vem como resultado de fazer parte de um sistema que foi estabelecido para limitar a dignidade.

Algo parecido acontece hoje em relação à conquista da dignidade por meio do consumo. As muitas vozes em todos os meios de comunicação propalam a ideia de que finalmente a dignidade do cidadão brasileiro está sendo resgatada. A tão falada classe C, antes excluída, agora começa a fazer parte do sistema. Isso significa que estas pessoas começam a ser incluídas para ter acesso ao bem-estar quem antes lhes era negado.

A classe C agora pode comprar o que antes era apenas "sonho de consumo". Eletrodomésticos, móveis, automóveis, eletrônicos, roupas, diversão, tudo está à sua disposição, aparentemente demonstrando que "nunca antes neste país" tantas pessoas foram resgatadas da sub-humanidade para um estado de dignidade humana. É a redenção pelo consumo.

Ocorre que esse modo de vida que valida as pessoas por sua capacidade de consumo não foi estabelecido para gerar dignidade, mas para alimentar o sistema de produção existente, em que se precisa crescer sempre mais para se tornar o dominador do mercado e assim saciar a sede de lucro de seus patrocinadores. O consumo com base na necessidade foi transformado em consumismo movido por anseio de dignidade e apresentado com redentor das gentes.

Nesse caso, penso que a promoção da dignidade e da cidadania se daria pelos valores invertidos do Reino de Deus que afirmam, entre outra coisas, que a vida de alguém não consiste nos bens que ele possui, que aquele que tem o suficiente para sua subsistência (o que comer, onde morar, o que vestir...) deve abrir espaço em sua alma para o contentamento, que as pessoas devem trabalhar para ganhar o suficiente para si e para ajudar quem esteja necessitado (não para acumular), que aqueles que tem alguém a seus serviço devem pagar salários dignos (e não retê-los para si).

No entanto, é mais comum entre os que deseja incluir os excluídos agir exclusivamente na direção de prepará-los para sobreviver no sistema e dar-lhes ferramentas para fazer arrancar a parte que puderem do bolo para si mesmo e seu conforto.

Chega a ser desanimador refletir sobre este estado de coisas, mas continuo crendo que o Bem prevalecerá e um dia, e cada vez mais, as estratégias de poder e dominação que negam o projeto de Deus para a humanidade serão expostas e ridicularizadas por Cristo, suas palavras e seus seguidores.

Texto extraído e editado a partir de minha participação no fórum de discussão realizado no contexto da disciplina "Diaconia e Cuidado" tendo como assunto "Vitimização e desigualdades são faces da mesma moeda". Fórum realizado dentro do formato proposta pela EST - Escola Superior de Teologia.

15 julho 2012

Sacerdotalismo Evangélico


Começo refletindo sobre o contraponto da proposição: clero e povo. O fortalecimento de uma casta sacerdotal é o que há de mais contrário a evangelho libertador de Cristo. Ressalto a questão pelo fato de entender que a simples necessidade de considerar o assunto dessa forma revela quão distante estávamos na época colonial e estamos hoje de experimentar as boas novas do Reino.

O cristianismo colonial luso-brasileiro, a despeito do entendimento de alguns, não inventou nada. Tão somente é herdeiro de uma mentalidade sacerdotal que dominou a religiosidade humana desde épocas imemoriais, serviu de arcabouço e esboço de fé na aliança de Deus com o judeus e foi reformada em Jesus a partir de seu entendimento de que não importa se a adoração é no monte ou no templo em Jerusalém (sob orientação sacerdotal); mas sim que seja em espírito e em verdade.

Nessa abordagem destaco os papéis ativo e passivo destinados respectivamente ao clero e ao povo. O sacerdotalismo bem pode ser visto como uma estratégia de manutenção de poder. É o sacerdote que sabe como a adoração deve ser feita, porque é ele quem sabe como Deus é e como gosta que as coisas aconteçam, portanto ele que está no controle; é o sacerdote que conhece os rituais, os sons, as cores, as palavras que devem e podem ser ditas, o que é bom e o que é ruim, portanto é ele quem deve conduzir o culto; é o sacerdote quem fala do jeito que Deus entende e por isso é ele quem fala com Deus. Ao povo compete a passividade de cumprir as orientações sacerdotais e tentar fazer tudo certinho, torcendo para que Deus não fique irritado caso alguma coisa saia diferente do esperado.

Não devemos nos enganar: o sacerdotalismo não é prerrogativa do catolicismo hierárquico e institucionalizado. Esteve presente nos povos antigos, entre os judeus e tem forte presença na igreja brasileira dita evangélica (reformada, pentecostal ou neo-pentecostal). Quem fala? Quem ensina? Quem ora? Quem se veste diferente? Quem tem destaque sobre os demais? Quem deve ser respeitado mais que os outros? Quem tem as palavras mais sábias? Quem deve ser seguido? O sacerdote!

Penso que a multiplicidade de dons e ministérios na efervescente e libertada igreja neotestamentária foi aos poucos sendo sufocada pelo retorno de um sacerdotalismo que, mesmo ferido de morte pelas palavras e vida de Cristo, ressurgiu alimentado pela natureza caída de um ser humano prepotente e sedento de poder. 

Quando a Graça multiforme de Deus, concedida pelo uso dos múltiplos dons do Espírito na diversidade da igreja é substituída pela confiança em um superministro sacerdotal que concentra em si a comunicação e o acesso à presença divina, a igreja sofre imensamente (como tem sofrido e parece que ainda irá sofrer por algum tempo), subsistindo aquém daquilo que o seu Senhor pensou para ela.

Texto extraído e editado a partir de minha participação no fórum de discussão realizado no contexto da disciplina "História da Igreja na América Latina" tendo como assunto "Religiosidade, Piedade e Teologia na Época Colonial". Fórum realizado dentro do formato proposta pela EST - Escola Superior de Teologia.

O elefante da salvação


Penso que um elemento comum à diferentes igrejas cristãs no Brasil é a salvação. Cada uma observa e entende a salvação por um prisma particular e apresenta-se como defensora e promotora da sua salvação.

Assim, se alguém deixa de beber e fumar para preservar seu corpo, foi salvo; se uma comunidade passa a valorizar a vida humana acima do dinheiro, foi salva; se valoriza a dimensão espiritual e busca uma experiência de transcendência, foi salvo; se defende a vida em suas expressões mais frágeis, foi salvo; se reconhece a responsabilidade de cuidar do planeta, foi salvo.

É como se todos estivessem tateando o grande elefante da salvação (como na história dos cegos) e o descrevendo pelas partes. Tudo isso é salvação, ou melhor, tudo isso resulta de salvação.

Então, um grande desafio para a proclamação do evangelho seria admitir que todos somos parciais em nossa compreensão da salvação, mas todos a desejamos para nós e para os que nos cercam. Cada igreja promove aquilo que acha razoável para explicar e convencer a respeito da salvação que percebe mas, muitas vezes, o faz negando ou diminuindo o entendimento alheio, o que em nada ajuda à compreensão dessa tão grande salvação.

Penso que muito do que entendemos e apresentamos como salvação decorre de uma transação que conhecemos apenas em parte. Algo que não está em nossa dimensão, embora que seus sinais e marcos tenham invadido a humanidade na pessoa de Cristo. Quem sabe, então, se nos detivéssemos a explorar essa tão grande salvação, compreender e experimentar os seus aspectos multifacetados, passaríamos a percebê-la mais presente operando na vida daqueles que nos cercam e a proclamação seria uma grande orquestra de sons harmoniosos.

Quem sabe se a salvação da confissão se juntasse à salvação da espiritualidade e à salvação revolucionária à salvação da proclamação e a todas a demais teríamos boa chance de impactar nossa geração com as boas notícias do Reino de Deus.


Texto extraído e editado a partir de minha participação no fórum de discussão realizado no contexto da disciplina "História da Igreja na América Latina" tendo como assunto "Religiosidade, Piedade e Teologia na Época Colonial". Fórum realizado dentro do formato proposta pela EST - Escola Superior de Teologia.